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“Foi legal tio! Eu roubei uma menina”

O título deste ensaio foi a resposta que J. C.,uma criança de 6 anos, me deu quando lhe perguntei em um trabalho da Pastoral do Menor, como tinha sido sua semana: “Foi legal tio! Eu roubei uma menina”. J.C. vive com a avó, e mais 2 irmãos. Ambos sobrevivem da aposentadoria da avó. A mãe é tóxico dependente de crack, e devido a essa condição é moradora de rua.

Seu pai acabou sendo morto por envolvimento com o narcotráfico. J.C. e sua família vivem em um cortiço situado nos arredores de um bairro de classe média alta de São Paulo, e em princípio poderiam ser identificados como sendo uma família em estado de exclusão social.

Esse termo teve sua origem na França, nas últimas décadas do século XX, e dizia respeito a uma desafiliação (exclusão) de vínculos com o Wellfare State (Estado de bem estar social). Dito de outro modo, o estado de exclusão é marcado pela perda de condições de bem estar social, como perda de emprego, de moradia, de um nível mínimo de consumo, dificuldades de acesso à educação, à bens e serviços públicos básicos, bem como ausência de crédito para situações emergenciais, aquisição de imóveis e demais bens. Contudo, este conceito não ajuda exatamente e entender como a família de J.C. chega a essa situação, pois não se trata exatamente de uma perda de direitos, uma vez que ele e seus irmãos nunca os tiveram. O conceito ou categoria de vulnerabilidade social diz respeito a mobilidade de uma situação social para outra com aumento da privação de bens e serviços, devido a uma vulnerabilidade em relação a instabilidade do mercado de trabalho, provocada principalmente pelo desemprego estrutural que não é o mesmo que o desemprego conjuntural. Este depende, como o nome diz, da conjuntura, ou seja, da situação decorrente de um dado momento, por algo que acontece (recesso econômico, chuvas intensas ou períodos de seca, e assim por diante) e afeta o mercado de trabalho. Já o desemprego estrutural diz respeito ao modo como se estrutura o mercado de trabalho na sociedade contemporânea, ou seja, ao modo como o uso da tecnologia na automação que substitui a mão de obra humana nos fatores de produção, entendido como otimização de custos ou flexibilização do trabalho. Eis o paradoxo da sociedade contemporânea: Ao mesmo tempo que a sociedade contemporânea diz que você pode ter acesso a todos os bens e serviços disponíveis no espaço midiático [desde que tenha renda], a mesma também diz: “Nós não precisamos da sua mão-de-obra”. Consequentemente, eis a vulnerabilidade enquanto o trabalhador se vê ameaçado frente ao risco do desemprego estrutural, sem proteção social para lhe garantir condições dignas (saúde, moradia, educação, segurança...) de suportar um período de ausência de remuneração por falta de emprego, devido as estruturas sociais não suportarem o crescente número de desempregados desta condição estrutural, deslocando da condição de inclusão para a exclusão, ou seja, desloca setores médios para a situação de pobreza, e desta a última fase, chamada de exclusão social, enquanto atinge um nível drástico de desvinculação das instituições sociais, a saber a miséria.

Evidentemente que se mesmo os setores intermediários sofrem tal risco, há grupos que constituem verdadeiras zonas de vulnerabilidade, por terem menores condições de suportar a instabilidade do mercado de trabalho, como por exemplo onde há (1) baixo grau de escolaridade e instrução; (2) insuficiente ou inadequada formação e baixa qualificação profissional; (3) ausência ou reduzida experiência anterior de trabalho, especialmente com os jovens; (4) ser portadores de necessidades especiais; (5) grupos de idosos ou com doenças crônicas, que apresentam redução da capacidade física; (6) discriminação em função do gênero, cor da pele, etnia[1]. Tais grupos que compõe essas zonas de vulnerabilidade alcançaram em 2004, 25,3% da população em situação de alta privação de bens e serviços, sendo a família do J.C. encaixada nos 3,1% de altíssima privação, o que corresponde em números reais a cerca de 330 mil pessoas na situação da família do J.C na região metropolitana de São Paulo, 1 ano antes de ele nascer[2].

Em 2013 a população de São Paulo duplicou em relação a 2004[3], e ainda que em números percentuais o Brasil esteja enfrentando melhor a crise que alguns países europeus, em números reais a taxa de desemprego vem aumentando desde janeiro, que era de 5,4% chegando em 10,9% em março e 11,4% em abril, estimando cerca de 1,230 milhões de desempregados, ou seja, vulneráveis, desde a uma zona intermediária até a situação de risco social grave, advinda do desemprego estrutural, 54 mil a mais que no mês anterior, e quase o dobro do número de desempregados em 2004[4]. Não parece ser mero acaso o fato de que o setor de produção o Brasil está em 13º lugar no ranking de atração de investimento externo[5], exatamente devido à falta de investimento do governo em infraestrutura (p. ex., o custo no setor de construção cresceu mais que a inflação) e alta carga tributária, não favorecendo o crescimento da produção nacional e mesmo perdendo postos de emprego, coincidir com o fato que a população prisional de São Paulo desde 2004 cresceu em 197%, sendo já estimada em cerca 138 mil detentos em um sistema que comporta somente cerca de 90.000[6]. Só no ano de 2010, o sistema adicionou 9 mil novos presos, a um custo estimado de 25 mil reais por vaga, o que equivale em média a uma bolsa de estudos universitários.

Assim, em 2013, J.C. , filho da miséria que é mãe da violência, ainda é sinal de que uma parcela da população não tem condições de resistir a miséria, acabando exposto ao mundo da violência e da revolta, situação em que não raro é tentado ao mundo do crime. Não se pode dizer que onde há pobreza há violência, e que toda a violência é fruto da pobreza, mas certamente onde há violência há alguma forma de pobreza, e mais ainda onde a miséria tem o luxo como vizinho. As condições de vida de J.C., uma criança inteligente e amável, revelam um dado grave da confusa percepção da realidade social. Ninguém, e isso inclui os 138 mil detentos, nasce criminoso. J.C. é fruto de uma situação de alta vulnerabilidade social, resultado da falta de consciência política e da falta de memória e critérios para eleição e cobrança dos parlamentares elegidos, fruto da apatia que prefere culpabilizar indivíduos a assumir a parcela de culpa pelo cenário dos espaços de decisão político, especialmente responsáveis pelos cenários sociais. Situações como a de J.C. exigem medidas de curto, médio e longo prazo. A curto prazo se faz necessário instituições capazes de cooperação social para atender as necessidades imediatas de tais grupos a fim de atenuar os fatores de vulnerabilidade, o que não dispensa a cooperação do voluntariado. A médio prazo é necessário uma política de habitação social popular, para atender os 3,1% de famílias que se encontram nessa situação. E a longo prazo, medidas de política fiscal, monetária e trabalhista do Governo Federal que invistam na indústria brasileira. Com 3.5 bilhões destinados a manutenção de um sistema prisional falido há que se perceber que um país que não investe em seus estudantes e seus trabalhadores acabam gastando com sua população prisional, em que ao invés de oferecer uma estrutura para dar uma profissão a crianças como J.C. acabará por aumentar as estatísticas criminais. A mudança deste cenário envolve a todos, desde a disposição ao voluntariado, como modo de atenuar danos sociais, até o uso consciente de seu direito eleitoral e sua consciência de cidadania, elegendo pessoas que representem as necessidades e estejam dispostas e orientadas para o bem comum da sociedade, a menos que alguém não se incomode com o fato de que uma criança de 6 anos possa alargar as fileiras da população prisional.

Aqui não se trata de condenar pessimistas, pois é inevitável o seu surgimento em cenários caóticos, mas sim de convocar àqueles que acreditam que a esperança da mudança pode conduzir a uma postura de procurar compreender cada vez mais, em busca de lucidez, as causas complexas da realidade a fim de se estar aberto às inspirações de mudança e inventividade social. Esse ensaio se destina àqueles que anseiam, diante da pergunta feita ao J.C., de como foi a semana, a resposta: “Foi legal tio, a professora me elogiou pela minha nota na prova, e me disse para continuar assim, que eu vou ser uma grande pessoa”.

[1] KAZTMAN, R. Seducidos y abandonados: el aislamiento social de los pobres urbanos. Revista de la CEPAL, Santiago do Chile, n.75, p.171-189.

[2] Em 2004, a população da Grande São Paulo era de 10.670.760. De acordo com Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (SEADE) cf. http://www.seade.gov.br/produtos/msp/dem/dem9_008.htm

[3] A população metropolitana de São Paulo atingi a cifra de 20.128.227 habitantes, de acordo com (SEADE) cf. http://www.seade.gov.br/produtos/projpop/index.php.

[4] Segundo o SEADE cf. http://www.seade.gov.br/produtos/msp/emp/emp3_g001.pdf.

[5] http://www.indicadorbrasil.com.br/2012/12/brasil-e-o-13o-colocado-em-ranking-de-competitividade/

[6] De acordo com o Panorama do Sistema Penitenciário Paulista, há uma população prisional estimada em 138.306, para um Sistema Penitenciário que comporta 90.816 vagas. cf. http://www.observatoriodeseguranca.org/dados/penitenciario/panorama.

 

Alex Villas Boas: O autor é Professor de Filosofia no Centro Universitário Assunção UNIFAI e de Teologia na Escola Dominicana de Teologia (EDT) e Instituto São Paulo de Estudos Superiores (ITESP). Também é professor convidado da PUC-Rio e da Escola de Fé e Política Waldemar Rossi.

 

Fonte: Artigo com publicação em nosso site autorizada pelo autor.

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